Da Lei das Contravenções à regulação das Bets: quais regras regem os jogos de aposta no Brasil

A regulamentação das apostas on-line completou cinco meses em vigor com um acúmulo de controvérsias e, como consequência, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado Federal que colocou em investigação, entre outros aspectos, o comprometimento da renda de famílias, uma possível ligação de empresas do setor com práticas de lavagem de dinheiro e o uso de influenciadores digitais na promoção e divulgação das atividades.

A legislação sobre o assunto é resultado de uma série de movimentações. Desde 2018, com a sanção de uma lei federal pelo Governo Temer, a operação das apostas de quota fixa de eventos esportivos, as chamadas “Bets”, passaram a ser legais no País, abrindo um precedente em um ecossistema que, até então, era gestado sem que houvesse regras objetivas e, em parte, na ilegalidade. Naquela época, ficou previsto no texto a necessidade de regulação do mercado em até quatro anos, o que ocorreu em 2023.

No arsenal de leis que versam sobre apostas, estão marcos proibitivos como a Lei das Contravenções Penais, de 1941, que veta práticas como o Jogo do Bicho, loterias não autorizadas e outras modalidades enquadradas como jogos de azar. E outros marcos mais permissivos, como a Lei Pelé, de 1998, que aborda a utilização de recursos vindos das loterias oficiais, regularizadas desde 1944, para financiar o esporte. 

Nestor Santiago, professor do Departamento de Direito Processual da Universidade Federal do Ceará (UFC), comentou que a Lei de Contravenções Penais foi a primeira investida na proibição de jogatinas. Ao traçar um breve histórico da reação do Estado para com o comportamento de apostadores, ele frisou que, nos dias atuais, a única operação nos moldes de uma loteria proibida no território nacional é o Jogo do Bicho, criado inicialmente no Rio de Janeiro, nos anos 1890.

“É interessante pensar que aqui no Brasil se permite, por exemplo, apostas em corridas de cavalos”, comparou o estudioso. “O grande boom do Brasil, com relação a cassinos, é de 1930 a 1945, que coincide basicamente com o governo de Getúlio Vargas. Em 1946, que termina o Estado Novo, o presidente Eurico Gaspar proíbe cassinos. E em 1990, início dos anos 2000, surgem os bingos, que surgem pela Lei Zico e passam a ser proibidos pela Lei Pelé”, comentou em seguida.

Ao que evidenciou José Felipe Gurjão, advogado especializado em Direito do Consumidor, o início do “processo de estruturação e legalização da exploração pelo mercado de apostas” se deu, de fato, com a lei de 2018. “Ela foi criada para que parte dessa receita fosse para a Segurança Pública”, explicou o especialista, afirmando que um “limbo jurídico”, deixado sobre Bets desde então, só foi sanado com a regulamentação de 2023.

Comumente, as operadoras de plataformas de apostas on-line apresentam dois formatos de serviços. O primeiro tipo consiste nos palpites baseados em jogos esportivos. Já o segundo é o dos games de cassino virtuais — o famoso “Jogo do Tigrinho”. Sobre essas empresas, Gurjão explanou que são, como previsto na lei, ferramentas de entretenimento, não se configuram como meio de renda extra.

Atualmente, tramitam no Congresso Nacional projetos diversos sobre a legalização de apostas. Um deles, que está registrado no Senado como PL 2.234/2022, apresentado na Câmara dos Deputados em 1991 pelo ex-parlamentar Renato Vianna, busca autorizar o funcionamento de cassinos e bingos no Brasil, legalizar o Jogo do Bicho e permitir apostas em corridas de cavalos — que nos dias atuais ocorrem apenas em locais com anuência do Ministério da Agricultura.

O advento da regulamentação das Bets

A regulamentação das Bets instituiu uma série de mecanismos que possibilitariam mais segurança aos usuários e para as plataformas, como a identificação dos jogadores por documentos, o reconhecimento facial, o cadastramento prévio de contas bancárias como origem e destino de recursos e a proibição do acesso à crianças e adolescentes. Quem fiscaliza as empresas é o Ministério da Fazenda, através da Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA).

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Embora dentro da lei, Nestor Santiago chamou atenção para o comprometimento da economia com as Bets. “O grande problema que a gente percebe hoje é o endividamento da população. Há muito mais jogadores em Bets do que investidores no Brasil. Isso tem atingido com muita força, principalmente, a classe média baixa”, constatou o entrevistado, mencionando um dado revelado pelo Raio-X do Investidor Brasileiro, divulgado no início de maio pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima).

Outro indicativo do impacto econômico desse setor foi um estudo publicado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), em janeiro. Ele mostrou que o varejo deixou de faturar de R$ 103 bilhões ao longo do ano de 2024 em decorrência do redirecionamento dos recursos das famílias para as Bets. A pesquisa pontuou que, além do endividamento e do vício, as apostas on-line têm uma influência socioeconômica significativa para toda sociedade.

Segundo opinou Santiago, é “muito complicado”, por mais que existam travas entre o rol de dispositivos da regulamentação das Bets, “controlar o vício por meio da lei”. No entendimento dele, “se o Estado quisesse mesmo regulamentar os jogos, ele proibiria, definitivamente”, porque “resolveria boa parte dos problemas com relação ao vício”.

João Felipe Gurjão, por sua vez, comentou que “embora tenha havido a regulamentação, muitas Bets ainda não se submeteram a esse processo de regularidade”. Para o especialista consultado, houve um avanço com as restrições. Entretanto, “existem muitos pontos que não são abarcados pela lei”.

Indagado se haveria a possibilidade de um aprimoramento da lei, a partir de um endurecimento das normas, o profissional afirma que “seria preciso um endurecimento sob o ponto de vista de legislação”, seja através de “uma nova lei ou novas portarias aumentando essas restrições”.

Em novembro do ano passado, a Procuradoria-Geral da República (PGR) entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra as normas que permitem a exploração e a divulgação de apostas virtuais, constantes na Lei das Bets. Conforme o órgão federal, as regras não preveem mecanismos suficientes para proteger direitos fundamentais, bens e valores previstos na Constituição Federal. A CNC e o Solidariedade também ingressaram com processos na Corte.

No mesmo mês, o Supremo, numa decisão liminar tomada pelo  ministro Luiz Fux e confirmada por unanimidade em plenário, vedou a publicidade de bets para crianças e determinou a adoção de medidas contra o uso de recursos do Bolsa Família e outros programas em apostas. Em dezembro, a Advocacia-Geral da União (AGU) disse que há “barreiras de ordem prática de difícil superação” para impedir o uso de benefícios sociais para a realização de apostas em plataformas on-line. 

Defensores acompanham casos

Atualmente, a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPE-CE) tem acompanhado situações decorrentes de vício em jogos. A problemática é caracterizada como uma doença mental, reconhecida Organização Mundial da Saúde (OMS), que recebe o nome de ludopatia.

Ao PontoPoder, a defensora cearense Clara Sampaio Lasserre evidenciou que o órgão estadual tem por missão a defesa das pessoas em situação de vulnerabilidade, que têm sido “as mais atingidas pelos jogos de azar”. “Os que os defensores mais têm se deparado, segundo os próprios relatos, é com questões relativas ao superendividamento”, disse. 

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“E também se depara com a relação da ludopatia com problemas familiares. Já tive casos que o divórcio do casal tinha ligação com o vício em jogo do rapaz”, completou Lasserre, sinalizando que conflitos familiares, por dilapidação do patrimônio familiar, são comuns. 

A entrevistada relatou ainda casos de violência doméstica provenientes de tais circunstâncias. “Relacionado com esse mesmo caso, além do vício, que estava gastando os bens do casal, esse rapaz também tinha praticado violência contra a mulher nos momentos em que ele tinha perdido”, conta.

No entendimento dela, “é necessário haver uma regulamentação efetiva” dos jogos. “Que haveria o surgimento do vício, um incremento da ludopatia, que pessoas em situação de vulnerabilidade poderiam sofrer com superendividamento, não é novidade. Quando nossos parlamentares aprovaram a lei, eles sabiam disso. Foi uma decisão política”, argumentou.

Defensoria Ceará
Defensoria acompanha casos relacionados com apostas no CearáFoto: Reprodução / DPE-CE

O Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) já baixou duas notas técnicas, formuladas por defensores de diferentes lugares o país, se posicionando sobre a regulação de Bets, sobre o comprometimento da renda de pessoas a partir deste mecanismo e acerca da publicidade do setor. 

Coordenador-geral da Comissão de Defesa dos Direitos do Consumidor do Conselho, Cássio Bitar, que colaborou com os textos alega que a entidade percebeu que a prática atingiu um segmento do atendimento das Defensorias, que é o de “endividamento de risco” — quando as dívidas acumuladas atingem um ponto em que se torna praticamente impossível quitá-las nos padrões normais.

“Nós percebemos que a autorização apresentou alguns impactos. Um deles é, justamente, a mudança da faixa etária de pessoas que procuram os núcleos por superendividamento. Temos jovens, inclusive universitários, que estão com comprometimento de renda e desorganização de suas economias por conta de compromissos relacionados com as apostas”, analisou.

As notas do Condege apresentaram recomendações, a exemplo da proibição de concessão de bonificações nas apostas e a criação de um cadastro nacional de apostadores (para identificar o perfil socioeconômico).

Provocado, Cássio Bitar também disse acreditar que “falta eficácia das medidas adotadas até então”. “É preciso pensar em medidas mais efetivas para enfrentar a questão”, conclui. Para ele, além de um cadastro comum, é necessário que exista uma estratégia para resolver o problema da “ausência de educação financeira”.

Instituto prega ‘jogo responsável’

O Instituto Brasileiro do Jogo Responsável (IBRJ), que congrega representantes de empresas do setor que atuam no país, empreende a defesa do ecossistema dentro da legalidade. Em seu site, a instituição alega “tolerância zero com o mercado ilegal”.

Numa entrevista com o PontoPoder, o presidente executivo do IBJR, Fernando Vieira, enalteceu a regulamentação e a participação do Instituto em um “diálogo constante” com as autoridades para “trazer experiências de mercados mais maduros”, onde empresas que compõem o quadro de associados, para a construção da legislação. 

Inglaterra e Austrália foram citadas durante a conversa. Na visão do dirigente, a regulamentação é “moderna” e “faz um escrutínio muito grande para as operadoras conseguirem registro” para executar o serviço. Ele mencionou “mecanismos de proteção” para o apostador, como limites de perda e o reconhecimento facial, e elementos que garantiriam a “integridade esportiva”.

“O grande desafio que temos pela frente é a questão do mercado ilegal”, atribuiu. De acordo com ele, esse é um dos principais temas que o IBJR tem trabalhado. Vieira calculou que metade das plataformas existentes estão ao longe da lei e afirmou que este fato é uma ameaça para o mercado, para o apostador e para a “integridade esportiva”.

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Fernando reforçou o papel da Lei das Bets. “A regulamentação é um marco, um divisor de águas, entre o Velho Oeste que acontecia antes da regulamentação e a coisa organizada, dentro de um mercado regulado, com esses mecanismos de proteção para que ele seja sustentável e o apostador seja protegido”, sublinhou.

Ele compreendeu que, pela regulamentação estar no início e, portanto, exigir “uma certa adaptação”, deve haver um tempo para que “seus defeitos” sejam avaliados. Ao que disse, a formatação atual é “robusta, completa e moderna”, além de demonstrar ser “viável”. O porta-voz do IBJR admitiu que aprimoramentos são possíveis, mas indicou que as discussões tocadas no Congresso Nacional, inclusive na CPI das Bets, indicam um “desconhecimento muito grande” quanto ao assunto.

Parlamentares avaliam lei

A reportagem buscou todos os membros das bancada do Ceará no Legislativo federal, seja por intermédio das suas equipes de gabinete ou diretamente, em busca de análises dos parlamentares sobre a questão.

Apenas os deputados federais André Figueiredo (PDT) Célio Studart (PSD) e a deputada federal Dayany Bittencourt (União) responderam aos questionamentos endereçados até o fechamento deste texto. 

Para o pedetista, a legislação atual não é suficiente. “Inclusive, por ocasião da CPI das Bets, fiz uma visita à Federação Francesa de Futebol e até expus isso numa audiência pública com o ministro do Esporte, que seria interessante ver o exemplo que a legislação europeia trata o assunto”, sugeriu.

Figueiredo, então, continuou: “Temos também o Jogo do Bicho, que é tradição no Brasil, então fechar os olhos para isso seria até hipocrisia. Sou a favor da regulação do Jogo do Bicho, sim. Temos que fazer uma regulação geral de todo tipo de aposta no nosso país”.

Studart, considerando o arsenal de dispositivos legais existentes, realçou que “temos um caminho”. “Se não viermos a proibir em algum momento para que se siga a regulamentação, mas a legislação está falha, capenga”, advertiu.

“Falta regramento claro sobre publicidade e patrocínio, principalmente envolvendo influenciadores. O foco do governo foi fiscal — cobrar imposto, evitar evasão, proteger dados — mas esqueceram do impacto social”, ponderou.

Plenário da Câmara dos Deputados
Atualmente, tramitam no Congresso Nacional projetos diversos sobre a legalização de apostas. Foto: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados

Segundo o pessedista, ele protocolou um projeto de lei para proibir propaganda e outro para taxar o lucro dos influenciadores pagos por plataformas, direcionando a receita para o Piso da Enfermagem e para políticas de saúde mental. 

“Se não dá pra proibir tudo, que pelo menos possamos criar obstáculos monetários e publicitários (assim como foi feito com o cigarro lá atrás) e esse dinheiro volte pra quem mais precisa”, finalizou Studart.

Bittencourt julgou que “a legislação atual ainda é insuficiente para enfrentar os riscos que o mercado de apostas representa”. Conforme distinguiu, há um cenário específico de “impactos sociais e vulnerabilidade de jovens e famílias”. “Precisamos de uma legislação mais firme”, declarou.

A parlamentar do União Brasil disse que acredita na existência de um “espaço para endurecer a legislação”. “Defendo que tenhamos punições mais duras para essas irregularidades, e mecanismos obrigatórios de monitoramento, identificação de apostas suspeitas e proteção contra o aliciamento digital”, esclareceu.

O senador Angelo Coronel (PSD-BA) e o deputado federal Adolfo Viana (PSDB), relatores da regulamentação das apostas on-line nas duas Casas Legislativas que compõem o Congresso Nacional, não responderam aos pedidos de comentário enviados pela reportagem. O espaço segue aberto para eventuais manifestações posteriores.

O Ministério da Fazenda, pasta que comanda a SPA, também foi contatado, para que pudesse emitir uma posição sobre o assunto. Não houve uma resposta até a publicação desta matéria. O conteúdo será atualizado caso haja alguma devolutiva.

Fonte: Diário do Nordeste

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