Se o mundo fosse ESG, seríamos contra as bets?

A sigla ESG – usada para representar compromissos com critérios ambientais, sociais e de governança – tem ganhado protagonismo no discurso empresarial e nos relatórios corporativos. Mas, ao mesmo tempo em que se celebra sua disseminação, cresce o silêncio em torno de modelos de negócio que, embora legais, operam à margem desses princípios. As plataformas de apostas esportivas, popularizadas como bets, estão entre os exemplos mais emblemáticos dessa contradição.

Sob a ótica social, os impactos são alarmantes. Dados da Agência Pública mostram que, em 2023, beneficiários do programa Bolsa Família destinaram aproximadamente R$ 3 bilhões a sites de apostas. Trata-se de uma transferência de recursos públicos, voltados à subsistência de famílias em situação de vulnerabilidade, para uma atividade que não gera contrapartida em desenvolvimento social, geração de emprego ou educação financeira.

Se os critérios ESG forem levados a sério, por que aceitar que um setor que compromete a educação, o orçamento familiar e a saúde mental da população continue se expandindo sem enfrentamento institucional ou social?

A questão central não é apenas legal, mas ética. Embora autorizadas a operar, muitas bets adotam práticas que se aproximam do conceito clássico de fraude – não em sentido jurídico, mas como qualquer ação ardilosa e enganosa que vise ao lucro sobre a fragilidade alheia. Seus algoritmos exploram padrões de comportamento compulsivo, suas campanhas vendem a ilusão do ganho fácil, e seu modelo de negócios se sustenta sobre ciclos de dependência e perdas financeiras silenciosas.

Do ponto de vista da governança, a situação também é delicada. Grande parte dessas empresas está sediada no exterior, em territórios com tributação favorecida e regulamentação branda. Operam com pouca transparência, alto apelo emocional e escasso compromisso com práticas de responsabilidade corporativa. Como enquadrar um setor assim no discurso ESG?

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A literatura econômica há tempos alerta para os riscos da ausência de regulação robusta. Autores como Rutherford (2018) e Williamson (1991) apontam que, quando faltam regras e mecanismos de controle, prevalecem comportamentos oportunistas, orientados por ganhos individuais em detrimento do bem coletivo. Bock e Almeida (2018) e Veblen (1904) reforçam que negócios construídos sobre a exploração da ignorância, da vulnerabilidade ou da desinformação aprofundam desigualdades e desestabilizam estruturas sociais.

É nesse contexto que se impõe uma reflexão: se os critérios ESG forem levados a sério, por que aceitar que um setor que compromete a educação, o orçamento familiar e a saúde mental da população continue se expandindo sem enfrentamento institucional ou social? Não se trata apenas de regulação – embora ela seja urgente –, mas de um posicionamento claro sobre os valores que devem orientar empresas, investidores e formuladores de política pública.

As bets são, hoje, os “cigarros digitais” da sociedade contemporânea. Legalizados, promovidos, onipresentes na publicidade – e absolutamente danosos. Uma sociedade comprometida com o futuro não pode normalizar a exploração da fragilidade emocional e econômica dos mais vulneráveis como modelo de negócios.

Legal não é sinônimo de ético. E responsabilidade social não se faz apenas com relatórios: exige coerência. Se o mundo fosse, de fato, ESG, já teríamos deixado claro de que lado estamos.

Fonte: Gazeta do Povo

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