A nova fronteira da arrecadação municipal: oportunidades e desafios das apostas locais

A possibilidade de municípios regulamentarem e explorarem apostas de quota fixa é uma alternativa relevante para diversificar a receitas locais
A regulamentação das apostas de quota fixa no Brasil, consolidada com a Lei nº 14.790/2023, abriu uma nova frente de arrecadação para a União, mas também acendeu um intenso debate federativo. A ausência de menção explícita à participação dos municípios no marco legal levou diversos entes locais a buscar sua própria regulação da atividade. A disputa chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1212, ajuizada pelo partido Solidariedade, reacendendo a discussão sobre os limites e possibilidades da autonomia municipal no setor.

Os municípios são hoje os principais responsáveis pela entrega de serviços públicos essenciais, mas enfrentam sérias limitações financeiras. Mais de 60% de sua arrecadação depende de transferências da União, como o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Nesse cenário, a possibilidade de regulamentar e explorar apostas de quota fixa aparece como uma alternativa relevante para diversificar a base de receitas locais e reduzir a dependência do orçamento federal.

De um lado, os opositores da regulação municipal argumentam que a Constituição, em seu artigo 22, inciso XX, reserva à União a competência legislativa sobre consórcios e sorteios. Citam o risco de proliferação desordenada de loterias e a ausência de critérios técnicos nos municípios. O caso de Bodó (RN), que credenciou dezenas de operadores sem seguir normas federais, é citado como exemplo. Por outro lado, decisões anteriores do STF reconhecem que estados e municípios podem explorar atividades lotéricas, desde que respeitados os princípios constitucionais, como a proteção ao consumidor e a livre concorrência.

Efeito local das apostas

Um estudo da Leme Consultores aponta que a regulamentação municipal das apostas pode gerar até R$ 8 bilhões por ano em receitas locais. A proposta permitiria a inclusão de operadores de pequeno e médio porte, que hoje não têm condições financeiras de ingressar no sistema federal. Esse modelo poderia fomentar o empreendedorismo, reduzir a informalidade e impulsionar economias locais.

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Contudo, há riscos evidentes. A fragmentação da regulação pode levar operadores a se instalarem em municípios com baixa capacidade fiscalizatória, operando na prática em nível nacional sem o devido controle. A ausência de padrões unificados pode fragilizar a integridade do sistema, aumentar a vulnerabilidade à lavagem de dinheiro e prejudicar a segurança jurídica.

Uma solução viável seria a criação de uma regulamentação-quadro nacional, aprovada pelo Congresso e entes reguladores, que estabeleça diretrizes mínimas obrigatórias para a atuação dos municípios. Essa moldura incluiria critérios técnicos, exigências de transparência e integração de dados com os sistemas federais. Outra proposta é a criação de um sandbox regulatório, permitindo que os municípios testem seus modelos em ambiente controlado, com supervisão federal e análise de impacto regulatório (AIR).

Além disso, será fundamental garantir mecanismos de geolocalização que limitem as apostas ao território municipal e a comprovação da viabilidade financeira das operações, com base em estudos de mercado. É também necessário fortalecer a capacidade técnica das prefeituras, muitas vezes carentes de recursos humanos e tecnológicos para fiscalizar o setor de forma eficaz.

A experiência da Holanda serve como alerta. O aumento dos impostos sobre jogos no país levou ao fechamento de diversas operadoras e à migração de equipamentos para o mercado ilegal. Em 2024, mais da metade da receita do setor foi captada por sites internacionais não licenciados, revelando que uma regulação mal calibrada pode fomentar justamente o que se quer evitar: a informalidade e a falta de proteção ao consumidor.

Em síntese, a regulamentação municipal das apostas de quota fixa pode representar uma oportunidade concreta de fortalecimento fiscal, mas exige planejamento, coordenação e rigor técnico. O caminho passa por modelos cooperativos, consórcios intermunicipais, parcerias com a União e, sobretudo, um ambiente regulatório íntegro, previsível e equilibrado. Sem isso, o que poderia ser uma solução inovadora pode rapidamente se transformar em um problema institucional de grandes proporções.

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[1] Advogado e professor universitário com mestrado em Direito pela UFPE. Especialista em Contratos pela Harvard University e em Negociação pela University of Michigan. Advogado na área de Regulação, Negócios, Energia e Financeira. Experiência destacada na docência na UNICAP, IBMEC e PUCMinas.

[2] Extensão pela FGV/RJ, Especialização em Direito da Propriedade Intelectual pela PUC Rio, mestrando pelo INPI/UFRJ

[3] Advogado e Diretor Jurídico, Riscos e LGPD do Z.ro Bank, especialista em Direito dos Contratos pela PUC/SP; em meios de pagamentos e criptomoedas; em Negociação pela University of Michigan e Co-Chair na International Betting Integrity Association.

Fonte: Movimento Econômico

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