A possibilidade de torcer pela agremiação esportiva predileta e, ao mesmo tempo, galgar retorno financeiro alavancou as intituladas bets no Brasil, que foram normatizadas com a edição da Lei nº 14.790/2023. Sucede que a mera positivação de certo fenômeno socioeconômico e cultural não significa que as suas consequências deletérias sejam prevenidas e refreadas. De acordo com o Banco Central, em agosto de 2024, 24 milhões de pessoas físicas participaram de jogos de azar e apostas, sendo que cinco milhões eram beneficiárias do Programa Bolsa Família e destinaram R$ 3 bilhões ao setor, ou seja, 21,2% dos recursos distribuídos [1]. Com base em pesquisa realizada, o Instituto Locomotiva apontou que 86% dos participantes têm dívidas; 64% estão negativados na Serasa; oito, de cada dez, são pessoas das classes C, D e E; e apenas dois, de cada dez, integram as classes A ou B [2]. Trata-se de gravíssimo problema que afeta a situação de consumidores hipossuficientes e que pode intensificar o panorama do superendividamento daqueles que se encontrem de boa-fé.
No nicho mercadológico das apostas esportivas, evidenciam-se crescentemente as seguintes questões: 1) a presença contínua de empresas clandestinas e dos influenciadores digitais; 2) o descumprimento das normativas vigentes pelas avalizadas pelo governo; e 3) a carência de efetiva fiscalização pelo aparato estatal. No que concerne aos vilipêndios propiciados pelas empresas autorizadas, dentre outros, destacam-se: 1) a inexistência e/ou a precariedade do intitulado sistema de “autocontrole” ou de “limite prudencial”; 2) a concretização de publicidades enganosas e/ou abusivas; e 3) a falta de controle sobre a destinação dos recursos devidos para o setor esportivo. O fervor das apostas esportivas continuou a ser pauta dos meios de comunicação de massa e dos diversos centros científicos de discussão, sob a ótica socioeconômica, jurídica, da saúde mental, dentre outras, evidenciando-se os malefícios e os prognósticos negativos [3].
No transcorrer de 2024, enquanto os brasileiros aguçavam os desejos pelas bets, nomeadamente, os mais humildes e desinformados, o governo federal dava continuidade à regulamentação após a o início da vigência da Lei nº 14.790/2023. Contudo, não se vislumbraram providências concretas para evitar que empresas desautorizadas continuassem no mercado nem tampouco restou apresentada a lista das que foram chanceladas a operar [4]. Após um turbulento ano das viciantes bets, apenas em 30 de dezembro, o governo federal outorgou autorização, em caráter provisório, para determinadas empresas atuarem na exploração comercial de apostas de quota fixa, sendo publicada a Portaria SPA/MF nº 2.104 e a relação das que cumpriram os critérios exigidos. Todavia, as não avalizadas continuam a operar ilicitamente, não obstante o Acordo de Cooperação Técnica entre a SPA e Anatel, com o escopo de agilizar e otimizar o bloqueio de sites que funcionam de forma ilegal.
O dever de proatividade da Secretaria de Prêmio e Apostas perante o eflúvio de empresas não autorizadas a operar no Brasil e os influenciadores digitais
Sem embargo da vigência da Portaria SPA/MF nº 827/2024, que detalha os requisitos materiais e formais para a habilitação de pessoas jurídicas interessadas na exploração dos serviços de apostas de quota fixa no setor esportivo, muitas permanecem atuando ao alvedrio da legislação e prejudicam milhares de consumidores. Mesmo ciente de tão grave problema, o órgão público competente não tem agido de modo a prevenir e debelar situações deste jaez, compactuando com lesões materiais e morais para a uma multiplicidade de apostadores, principalmente, das classes sociais menos favorecidas economicamente. De acordo com o artigo 20, são vedadas quaisquer ações de comunicação e de patrocínio, incluindo-se a disponibilização de aplicações ou sítios eletrônicos, sem autorização emitida pela SPA, devendo ser divulgada lista atualizada das pessoas jurídicas avalizadas, nos termos do § 2º Compete ao aludido órgão público notificá-las, para a exclusão dos conteúdos, seguindo os trâmites dos §§ 3º a 6º.
O “capitalismo das plataformas” ultrapassa todos os limites planejados para resguardar sujeitos, mesmos que sejam os mais fragilizados, quando o assunto é galgar lucros e arrefecer a sua engrenagem patrimonial, acelerando as suas manobras sem freios e escrúpulos [5]. A Portaria SPA nº 1.231/2024 fixou um conjunto de regras sobre o jogo responsável, visando uma publicidade saudável e socialmente responsável aliada à prevenção e mitigação de malefícios individuais ou coletivos decorrentes da atividade. Ocorre que se trata de objetivo diametralmente oposto à sanha ferrenha das empresas do setor que não estão empenhadas com a incolumidade dos consumidores, mas, sim, unilateralmente, com os seus próprios ganhos. Seria utópico afirmar que estes agentes irão realizar esforços em benefício da saúde mental dos apostadores em virtude de dependência, compulsão, mania ou qualquer transtorno associado ao jogo patológico ou abusivo. O PL 2.985/2023, aprovado pelo Senado, proíbe a publicidade com a presença de influenciadores, dentre outros.
Providências prescritas para o jogo responsável descumpridas por operadoras e a carência de fiscalização pelo poder público
A prática do jogo responsável deverá ser materializada mediante diligências catalogadas nos artigos 3º a 9º da Portaria SPA nº 1.231/2024, a saber: 1) campanhas educativas e de conscientização; 2) sério monitoramento dos sistemas de apostas; e 3) capacitação da equipe operacional. Ora, se o poder público, até o momento, não está tendo êxito de banir as plataformas ilícitas, como conseguirá averiguar se as empresas estão cumprindo regras tão específicas? Quanto ao rigoroso monitoramento do sistema de apostas, a Portaria SPA nº 1.231/2024 preconiza deveres de natureza: 1) informacional; 2) de autolimites; e de 3) de constrição. No que concerne à primeira vertente, coaduna-se com um dos mais imponentes pilares do microssistema consumerista [6]. Toda e qualquer plataforma terá que dispor de seção específica denominada “jogo responsável”, na qual registrará, de forma clara e acessível, conteúdo mínimo sobre o tema.
Questiona-se se a Secretaria de Prêmio e Apostas tem apurado se as empresas autorizadas estão, realmente, cumprindo as normativas vigentes, disponibilizando orientações sobre “como apostar de forma responsável”; se há oferta de questionário de autoavaliação sobre os riscos associados e indicação de “sinais de alerta” para autovigilância quanto à ludopatia. Indaga-se: existem instruções claras para o acesso do consumidor a mecanismos preventivos de dependência, ao seu histórico e à sua situação atual quanto ao tempo de uso, valores gastos e aos canais de atendimento e à ouvidoria, como ordena a SPA? Salienta-se que, em caso de operação na modalidade física, as empresas são obrigadas a registrar os retromencionados dados e instrumentos, de forma visual e de fácil leitura, nos seus respectivos estabelecimentos.
A “ilusão” de que as empresas cumprirão as regras sobre “autocontrole” e “limites prudenciais” sem efetiva fiscalização, vedação de publicidades pelos influencers e do envio de mensagens para os consumidores
O desenfreado crescimento das bets, no Brasil, nomeadamente, nas classes C, D e E, que vêm se utilizando dos valores dos programas sociais, justificou a pormenorização do dever de as empresas oportunizarem aos apostadores o autocontrole dos seus atos. Nessa linha de atuação, os agentes operadores terão que disponibilizar sistema para “limite prudencial” da atividade, que poderá ser diário, semanal, mensal ou baseado em outros períodos. Deve conter opções de programação para alertas ou bloqueios de uso, conforme o tempo transcorrido na sessão, bem como de períodos de pausa, bem como da solicitação de autoexclusão, por prazo determinado ou de forma definitiva. A saúde mental dos jogadores tem sido objeto de vários vilipêndios e o sistema capitalista não cogita refrear os seus tentáculos para salvaguardá-la, por isso dificilmente tais normas serão executadas com facilidade.
Ora, se as regras para o autocontrole dos próprios apostadores revelam-se de escassa eficácia, as que tratam de medidas constritivas, atribuídas às empresas do setor, para se prevenir e combater o jogo patológico, são a fortiori mais custosas de concretização. Isso porque, em regra, não há interesse em zelar pelo estado de saúde dos apostadores, pois, como aponta Ladislaw Dowbor, a lógica do lucro substitui os seres humanos no sistema capitalista [7]. Foram estipuladas obrigações desde o momento da tentativa de cadastro do usuário até a realização do lance esportivo. O agente operador tem o dever de impedir o acesso de menor de 18 anos e de quaisquer pessoas que exerçam domínio ou influência na sua própria atividade, nas agremiações esportivas do certame e no setor público de fiscalização. De forma semelhante, os diagnosticados com ludopatia, por laudo de profissional de saúde mental habilitado, e aqueles obstados de apostar por decisão administrativa ou judicial específica, quando formalmente notificados, devem ser recusados.
Índices alarmantes sobre os transtornos mentais envolvendo as apostas esportivas, discussões sobre a ludopatia e a criação de Grupo de Trabalho são noticiados pelos meios de comunicação de massa e pelos estudos produzidos [8]. Em paralelo, a Portaria SPA nº 1.231/2024, no artigo 11, inciso II, reitera a prática do “jogo responsável”, porém, nos incisos IV, VI e VII, não veda o envio de mensagens eletrônicas para os consumidores. Restringe-se a apenas exigir clareza e ausência de ambiguidade na comunicação, no cadastro do usuário, apresentar a opção de aderir ou não ao recebimento, remoção da lista de destinatários, quando solicitada, e abstenção de remessa quando da autoexclusão do apostador, ou por decisão judicial. Se há o propósito de o poder público velar pela saúde da população mais afetada pela sanha das bets no Brasil – os mais carentes – deveria vedar as perturbadoras insinuações para os lances esportivos e a publicidade pelos influencers.
A especificação de publicidades abusivas no campo das apostas esportivas e a premência da presença e da ação da SPA para o acompanhamento do setor
O governo federal optou pela ampliação das hipóteses de publicidade abusiva com base nos seguintes fatores: 1) espacial; 2) comportamental; e 3) pessoal. São proibidas divulgações em locais de atendimento médico e psicológico; direcionadas a todos os níveis de ensino; e outros destinados à frequência de pessoas menores de 18 anos. Não são permitidas menções que estabeleçam ligação entre apostas e o sucesso pessoal e financeiro. Proscrevem-se também a ideia de ganho fácil ou aptidões extraordinárias, encorajamento de práticas excessivas de aposta, induzimento de que pode constituir alternativa ao emprego, fonte de renda adicional ou forma de investimento. Aproveitar-se da fragilidade dos consumidores, para lhes impingir a concepção de que não se valer das bets é “sinal de fraqueza” ou “qualidade negativa” aflora-se como prática absurdamente ilícita. Dada a hipervulnerabilidade das crianças e dos adolescentes [9], os artigos 12 e 13 dedicam-se a proibir a sua participação nas comunicações e a sua condição como destinatárias, imputando a presença de obrigatória cláusula de advertência acerca da vedação [10].
A impossibilidade de verificar se as empresas não autorizadas cumprem a Portaria SPA/MF nº 41/2025 e destinam as obrigatórias verbas para o setor esportivo
A significância social das apostas esportivas atrela-se não somente à possibilidade de a população obter ganhos, ao mesmo tempo em que torce pelo seu time favorito, mas também pelo fato de que a Portaria SPA/MF nº 41/2025 estabeleceu regras sobre a distribuição dos valores para as entidades, os atletas esportivos, além do Ministério do Esporte e afins, baseando-se em critérios temporal, formal e material. Operadoras – que estão no mercado de forma ilícita – com absoluta certeza, tendem a não respeitar as regras integrantes da Portaria SPA/MF nº 41/2025 e o poder público, com espeque no princípio da intervenção estatal, não pode se manter inerte. O Ministério da Fazenda, com o aparelhamento da Secretaria de Prêmios e Apostas, tem exercido a atribuição regulamentar, todavia, deixa ampla lacuna na faceta fiscalizatória e punitiva.
A efetividade do arquétipo normativo que circunda as apostas esportivas, englobando não somente as Leis Federais 13.756/2018 e 14.790/2023, mas também a miríade de portarias, instruções e notas técnicas, pressupõe, em caráter urgente, o intercâmbio e o diálogo entre a Secretaria de Prêmios e Apostas e os órgãos públicos e entidades integrantes do SNDC. Para além desse labor conjunto, competindo ao poder público envidar maiores esforços para ações fiscalizatórias e punitivas satisfatórias. Ademais, o envio de mensagens, para os consumidores, e as publicidades realizadas pelos influenciadores devem ser vedadas. É mister reiterar que brasileiros, principalmente os mais humildes, estão sendo cooptados pelas apostas esportivas, intensificando-se os desequilíbrios financeiros e o superendividamento.
[1] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/conteudo/relatorioinflacao/EstudosEspeciais/EE119.
[2] Disponível em: https://ilocomotiva.com.br/clipping/bets-86-das-pessoas-que-apostam-tem-divida.
[3] Cf.: MARQUES, C. L.; MARTINS, F. R.; MARTINS, G. M. Economia da atenção, gamificação e esfera lúdica humana: nova crise na proteção dos consumidores e os abusos das apostas e jogos on-line. Revista de Direito do Consumidor, vol. 156/2024, p. 183-197, nov. – dez. 2024.
[4] Cf.: VAN ROOIJ, A. J. et al. A weak scientific basis for gaming disorder: Let us err on the side of caution. Journal of Behavioral Addictions, [s.l.], v. 7, n. 1, p.1-9, mar. 2018.
[5] Cf.: .ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020. p. 22
[6] Sobre o direito à informação, conferir: BERNHEIM-DESVAUX, S.; SAUPHANOR-BROUILLAUD, N. Pas de nullité sans texte? L’exemple de l’obligation Générale d’information précontractuelle du droit de la consommation, RDC, mars 2018, p. 122. DE CRISTOFARO, G. La disciplina degli obblighi informativi precontrattuali nel Codice del consumo riformato, NLCC, 2014, p. 926 ss.
[7] DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. São Paulo: Outras Palavras, 2017, p. 55-65.
[8] Cf.: BMC PUBLIC HEALTH. Is there a health inequality in gambling related harms?A systematic review. Disponível em: https://bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12889-021-11292-2. Acesso em: 01 out. 2024.
[9] Cf.: DÍAZ-AMBRONA, M. D. H. Consumidor vulnerable. Madrid: Reus, 2016, p. 23-25.
[10] Acerca da veracidade, clareza e precisão, cf.: RAYMOND, G. Droit de la Consommation. 5. ed. Paris: LexisNexis, 2019, p. 343-356. BARENGHI, A. Diritto dei Consumatori. Milano: Wolters Kluwer, 2018, p. 135-164.
Fonte: Conjur